quinta-feira, 24 de março de 2016

resenha: As paixões em silêncio no filme “Carol”, baseado na obra de Patrícia Highsmith



Guest post: resenha intimista por Juno Griz*

A resenha não traz muitos spoilers, mas se você ainda não assistiu o filme 'Carol' e não gosta de ler sobre o filme antes de assisti-lo, recomendamos que você só leia a resenha depois de vê-lo! Na primeira parte do post, Juno fala sobre a sua relação com o livro que deu origem a o filme. Na segunda, sobre o longa em si. Aproveite!


“Comecei a chorar sem saber porque, sem nenhum diálogo ter se passado, sem a aparição de nenhuma das personagens, talvez por me dar conta das espirais de existência que cruzamos e observar - feliz - que o universo continua sempre a conspirar a nosso favor, pregando peças com os nomes, jogando com pequenos acontecimentos extraordinários.” 

As sensações

Quando eu tinha quinze anos, eu morava numa espécie de kitnet com a minha mãe, no interior do Rio Grande do Sul. Volta e meia nós viajávamos pra uma cidade vizinha onde o restante da minha família morava, e também, o meu amor platônico na época: Carol.

Nós nos víamos aproximadamente uma vez por mês ou a cada quinze dias, mas isso era o suficiente pra alimentar meus sentimentos por aquela garota de vinte e dois anos que falava tantas coisas interessantes sobre músicas, pessoas e sexualidade. Acho que esse último assunto me tocava especialmente porque até então eu nunca tinha beijado uma garota, apesar de já ter aprendido a palavra "lésbica" e também de já saber que toda aquela proximidade a mais que eu desejava com algumas das minhas amigas de colégio era em razão das minhas paixonites - que na época me rendiam muitas poesias, cartas secretas e lágrimas. A verdade é que até então eu nunca tinha tido a chance de conhecer alguém com quem eu pudesse conversar sobre tudo o que eu sentia, mas já sentia no mundo os indícios de que eu devia esconder de todxs minhas fantasias amorosas e minhas paixões não correspondidas.

Foi mais ou menos nesse período que eu fui a uma feira de livros com a minha mãe, na cidade onde morávamos. Lá, perdido entre uma das inúmeras bancas com edições de bolso, eu vi um livro com título cor de rosa em lombada lilás: "CAROL". Quando o peguei, a imagem borrada de duas mulheres abraçadas na capa fez com que eu rapidamente procurasse algum resumo. Na parte de trás encontrei então o que eu desejava, as letras em vermelho diziam "Um thriller sobre o amor proibido entre duas mulheres". Olhei ao meu redor para ver se minha mãe não estava por perto e comprei o livro.

A partir daquele momento eu estava encantada. Eu lia o romance sempre à espera das respostas, dos conselhos sobre esse modo de vida que habitava em mim e que jamais conseguia encontrar meios de se realizar. Ora eu o levava para o colégio e o lia entre os cadernos pra que ninguém me visse, ora eu lia escondida da minha mãe. O que, dadas as configurações da nossa casa, só me permitia ou lê-lo no banheiro, ou numa espécie de closet, um armário sem portas onde eu me sentava e lia enquanto minha mãe dormia, de modo que eu teria uma mínima vantagem, caso ela acordasse, para não ser pega em flagrante.

Foram nessas leituras - literalmente dentro do armário - que começou a se tornar palpável um mundo em que eu pudesse habitar. Havia pessoas que escreviam sobre o que eu sentia, havia quem sentisse o que eu sentia - saber dessas coisas era muito diferente de tê-las materializadas, nas minhas mãos, me companhando onde quer que eu fosse - eu não precisava mais me sentir tão sozinha.

Li e reli "Carol" inúmeras vezes. Marquei as páginas das minhas cenas favoritas, decorei algumas frases. Agora, quase dez anos depois, fiquei sabendo que o filme seria relançado. Fiquei muito empolgada e fui à estreia. Que loucura que é ver na realidade algo que só existia dentro de mim. Era quase como se "Carol" nunca tivesse sido lido por nenhuma outra pessoa no planeta, quase como se fosse fruto da minha imaginação, isolando-se do mundo pra dentro de mim e ficando inacessível a todo mundo... Mas a questão é que na primeira cena do filme, as primeiras notas da música tocando, naquele momento eu tive certeza de que não era só eu, mas o mundo também havia se transformado de alguma forma só porque aquele livro existia, porque aquele filme estava ali. Comecei a chorar sem saber porque, sem nenhum diálogo ter se passado, sem a aparição de nenhuma das personagens, talvez por me dar conta das espirais de existência que cruzamos e observar - feliz - que o universo continua sempre a conspirar a nosso favor, pregando peças com os nomes, jogando com pequenos acontecimentos extraordinários.

Namore com alguém que..


Uma resenha

"Carol" se passa na década de 50, nos Estados Unidos. Therese é uma garota de 19 anos que se apaixona perdidamente e à primeira vista pela personagem título. É da perspectiva de Therese que o livro é narrado, acompanhamos seus pensamentos sobre tudo o que ela está sentindo e como ela reage a isso e às pessoas ao seu redor. A história toda é basicamente sobre se apaixonar e sobre descobrir esse lugar outro para o qual nos descolamos quando "we fall in love".

O filme é maravilhoso. Despenquei pra dentro da história relembrando os diálogos mentais de Therese no livro quando o silêncio reinava na tela. Os olhares, os gestos, a delicadeza, cada palavra não dita se transportou pra essa outra linguagem de um jeito absurdamente simbiótico e sinestésico.

A Carol interpretada por Cate Blanchet é fisicamente um pouco diferente daquela imagina por mim há anos atrás – obviamente -, mas depois de assistir o filme pela segunda vez, me dei conta de que nenhuma outra pessoa viva poderia interpretá-la com mais fidelidade dos não ditos. Seu charme é absoluto e transbordante e acho que é quase impossível sair do cinema depois do filme sem estar apaixonada pela Carol interpretada por ela. Rooney Mara também está incrível como Therese. Ela encarnou com perfeição o rosto invisível que me acompanhou durante tanto tempo pelas minhas várias leituras do livro e - porque não dizer - foi um pouco o rosto que assumi durante todo esse tempo.

Acho que vale observar também tudo o que rodeia essas duas personagens ao longo do filme: desde o enquadramento peculiar que o diretor coloca, os figurinos divinos e todo o cenário cuidadoso, até a ambientação comportamental dos anos 50, os flertes lésbicos daquela época, o comportamento hiper-sexista dos homens (que infelizmente não ficou restrito apenas àquela década). Acho que Carol e Therese nos mostram muito dos diferentes tipos de força que somos capazes de assumir, das maleabilidades das nossas potências, e sobretudo das revoluções silenciosas que se operam no nosso íntimo e se desdobram no mundo quando estamos apaixonadas.

Essa resenha acabou sendo muito mais sobre a minha experiência com o livro e com o filme do que sobre o filme "Carol" em si. Mas na verdade não poderia ser de outra forma, "Carol" é como as paixões sobre as quais nunca seremos capazes de falar, pelo menos não completamente.


E além disso tudo, a nossa Carrie Brownstein atua no longa! Confira o trailer:



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Juno Griz é feminista, faz colagens, zines e bruxaria. Se ineressa por pedras, plantas, planetas e gatxs. Se quiser trocar ideias, fanzines ou carts é só procurar o tumblr: junogriz.tumblr.com

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